quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Chamam-nos de selvagens

Ontem assisti ao filme Sangue Vermelho (Call Her Savage), o penúltimo estrelado pela "it girl" original Clara Bow. Na produção, lançada em novembro de 1932, a jovem Nasa Springer — para seu desgosto e de sua família — não consegue se adaptar às normas sociais. Ela comete uma série de decisões erradas durante a vida, sendo deserdada pelo pai milionário, até que descobre, no leito de morte da mãe, que é cabocla. Seu verdadeiro pai era um bravo líder indígena com quem sua mãe manteve relações durante uma das viagens de negócios de seu esposo. O filme flerta com a ideia de que os ameríndios são guerreiros por natureza e que, por isso, aqueles que possuem sangue indígena têm maior dificuldade em se adaptar às normas sociais estabelecidas pelos brancos.

De fato, os brancos definem o que é ser civilizado. Trabalhar oito horas por dia para garantir o lucro dos outros, passar 1/3 da vida no trânsito, comprar frango engordado à base de anabolizantes no supermercado, aplaudir as ações da PM mostradas na TV, protestar contra presidente que acaba com a fome e fazer silêncio sobre presidente que recebe mala de dinheiro, passear em shoppings nos fins de semana, dormir à base de remédios para não pensar nas coisas horríveis que dizemos e fazemos uns aos outros no dia a dia. Isso é a civilização. A todos aqueles que vivem de outra maneira, seguindo outros valores que não a busca desenfreada pela acumulação de dinheiro e pela dominação dos outros seres vivos que habitam nosso planeta, chamam de loucos. Chamam-nos de selvagens.

Chamam-nos de selvagens porque não podem
nos subjugar.
Esse é o nome do filme em inglês. Nasa é chamada de selvagem por um pretendente rico porque bateu na mulher que desonrou a memória de seu filho, morto num incêndio. Pessoas civilizadas não extravasam suas emoções em público. Elas engolem suas frustrações a seco para depois resolvê-las de maneira mais privada, seja insultando estranhos, desenvolvendo uma úlcera ou viciando-se em remédios ou outras adicções da moda. Pessoas civilizadas não falam o que pensam ou sentem e jamais reagem à altura das ações às quais foram submetidas. O cidadão-modelo é a Marcela Temer — "bela, recatada e do lar", segundo a revista Veja — ou o Rodrigo Hilbert, brilhantemente desconstruído pelo PC Siqueira nesse vídeo. Ambos brancos e privilegiados num país de caboclos pobres. Pois eu não consigo ser assim.

Tenho muito de Nasa em mim. Infelizmente, para essa sociedade doentia — que, hipócrita, prefere patologizar quem aponta os seus erros ao invés de fazer auto-crítica — e felizmente, para mim — que não vou aceitar os rótulos dela. Talvez isso se dê porque eu também tenho sangue indígena correndo em minhas veias. Independente do motivo, a norma social imposta pelos brancos no continente americano me entedia no campo dos costumes e me revolta no das relações sociais. Mais do que a morte até. Não só não a sigo como também ridicularizo-a. Se eu tentar me encaixar nela, estarei traindo o meu próprio espírito. Mas sou confiante. Se Nasa não precisou fazê-lo para encontrar seu "happy ending" no final do filme, penso que eu também não irei precisar fazê-lo.

Se tem algo que precisa ser revisto é esse modelo de organização da sociedade e não aqueles que não se conformam com ele. Como dizia Bertolt Brecht, chamam de selvagem o rio que tudo arrasta, mas nada dizem das margens que oprimem-no. Tudo aquilo que não pode conter e que não consegue oprimir, a sociedade rotula. O establishment já praticamente dizimou os índios mas, para seu azar, seu sangue guerreiro permanece mais vivo do que nunca. Toda vez que alguém se recusa a oprimir os que já nasceram fodidos, uma banana é dada à civilização branca. Pois eu não quero ser civilizado se ser civilizado significar reproduzir a norma social vigente. Não devo obediência a assassinos — reais ou potenciais — e seus cúmplices, que não vêem nada de errado em caçar os membros mais frágeis da sociedade. Vão ter que me chamar de selvagem!

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