domingo, 8 de novembro de 2015

Brasil, terra turbulenta

Hoje a blogosfera progressista repercutiu bastante (veja aqui) a redescoberta de um documentário muito comentado nos meios acadêmicos e que julgava-se perdido. Trata-se de Brazil, the troubled land (Brasil, terra turbulenta, numa tradução livre), dirigido e produzido pela jornalista estadunidense Helen Jean Rogers e transmitido em junho de 1961 pela rede de televisão americana ABC. Na película, de quase meia-hora de duração, a jornalista busca explicar as razões por trás do apelo do comunismo entre camponeses da Região Nordeste do Brasil no período imediatamente anterior ao golpe de Estado de 1964. Alinhado à política externa do breve governo Kennedy, defende uma reforma agrária dentro das estruturas capitalistas, o que encontrou a resistência da elite local.

Se na Europa Ocidental o avanço do comunismo foi contido a partir da união da burguesia local com a burguesia americana para a criação de um Estado de bem-estar social que se tratava de uma tentativa de aplacar os movimentos revolucionários a partir de concessões da plutocracia à classe trabalhadora, na América Latina os movimentos revolucionários foram contidos basicamente através da força. No momento em que o documentário foi produzido, no entanto, o governo de John F. Kennedy, eleito com a bandeira de conter o comunismo e melhorar a qualidade de vida de seu povo, debatia se a melhor maneira de conter movimentos como os de Che Guevara no continente americano era recorrer ao incentivo ao desenvolvimento ou às armas.


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Captura de tela do documentário.
Brasil, terra turbulenta acompanha o cotidiano dos camponeses que se organizavam ao redor das Ligas Camponesas lideradas por Francisco Julião (descrito como "o mais importante líder camponês da América Latina") no estado do Pernambuco. Mais do que simplesmente demonizar o movimento, caracterizando-o como uma organização comunista que deve ser extirpada da sociedade, tenta explicar didaticamente sua razão de ser, que possui fortes raízes na herança histórica brasileira, marcada por profundas desigualdades entre quem tem e quem produz as riquezas. O Brasil, "a terra do samba", é descrito como "fabulosamente rico... para alguns". O Recife, cidade construída e mantida pelo açúcar, por exemplo, é "desconhecida pelo homem que cultiva a cana-de-açúcar".

Numa reunião na sede do Partido Socialista Brasileiro (muito diferente do atual PSB), o então deputado estadual Julião dá conselhos legais para os camponeses que tinham problemas com seus arrendadores ao mesmo tempo em que doutrinava-os para suas teses marxistas. As Ligas Camponesas assumiam o papel que deveria ser de defensores públicos e, de uma maneira geral, do Estado, executando "ações simples que demonstram fé nos 20 milhões [de camponeses]". Analfabetos em sua maioria, ganhando US$ 0,25 por dia e morando em com suas famílias inteiras em pequenos casebres de barro, os camponeses se vêem seduzidos por um discurso que lhes promete liberdade e educação para seus filhos. 

Severino, um dos camponeses acompanhados pela jornalista estadunidense, têm seis filhos, um dos quais teve paralisia nas pernas devido à desnutrição. Seus filhos "vivem num mundo onde há apenas um brinquedo" e apenas um deles frequentava a escola, o que ajuda a perpetuar o regime de semiescravidão em que vivia, visto que o direito ao voto era garantido apenas aos cidadãos alfabetizados. Segundo seu contrato, Severino tem o direito de usar uma porção de terra, "não a melhor", para cultivar milho e feijão. Sua pobreza contrasta com a riqueza de seu arrendador, o ex-governador Constâncio Maranhão, que possui uma luxosa casa na fazenda. Sua família explora as terras pernambucanas há 400 anos.

O "senhor" de Severino (palavras do documentário) usa um anel de 15 quilates de ouro e diz que seus arrendatários são felizes, ricos e gordos. "O 38 é a lei aqui, ele decide tudo. Não é a polícia nem a lei, mas a minha arma", diz sorridente o ex-governador do estado enquanto aponta sua arma para o cinegrafista e atira ao redor dele, numa tentativa patética de demonstrar quem é o macho aos que ousam vir do norte questionar-lhe sobre as injustiças que ele perpetua. "As coisas sempre foram assim, meus camponeses são preguiçosos e se alguém tentar vir aqui e organizá-los, eu o mato". Parece um discurso bastante atual, não é mesmo?

Enquanto isso, na casa de Severino, um dos 20 milhões de brasileiros que viviam sob o fantasma da fome, a família se alimenta de uma única refeição diária composta de arroz, milho e feijão. As crianças não tomam leite e nunca comeram carne. Jamais sentiram o gosto dessa fonte de proteína. "A terra que faz crescer açúcar não pode ser desperdiçada com comida", conclui o narrador. Severino, em discussão com a esposa, diz que não aguenta mais esperar as coisas melhorarem. Afinal de contas, "US$ 0,25 por dia não é o caminho para a riqueza nem para um pedaço de terra". Mas, para os que tiveram o azar de nascerem Severinos e não Costâncios tem sido assim desde o dias da escravidão.

Na loteria genética do "retrógrado Nordeste", apenas 5% do povo detinha 65% da terra (se brincar esse número continua o mesmo ainda hoje, mais de cinco décadas após a exibição do documentário). Os camponeses, em sua maioria analfabetos, têm na figura do trovador um importante comunicador. "Os violeiros são parte importante da vida camponesa, uma instituição tão velha quanto a terra", diz o narrador. No início dos anos 1960, no entanto, as canções mudaram. Agora eles cantam, influenciados por Julião, sobre a importância do proletariado em receber um salário decente e a necessidade de se fazer uma revolução castrista no Nordeste.

Ao voltar do intervalo, o documentário tenta desmerecer as ações de Julião e mostra os projetos do governo Jango para o Nordeste. "Bons planos, excelentes planos para industrialização e reforma agrária" que, devido ao assalto dos militares ao poder em 1964, jamais foram concretizados. Por trás da lenta implementação desses planos estava um "brilhante economista", o jovem Celso Furtado, então presidente da Sudene. a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste. Visivelmente incomodado ao ser indagado por Rogers sobre Julião, ele descreve-o como um político que descobriu que as Ligas Camponesas eram importantes veículos para se obter ganhos políticos.

Em seguida, o documentário caracteriza Julião como "um homem ambicioso", cujo poder repousava nos camponeses e seu inegável descontentamento. "De todos os políticos do Brasil, ele é o que passa mais tem com os camponeses que não podem votar". Para Rogers, ele organiza a "vasta massa analfabeta para que consigam o direito de votar e obter o poder com sua maioria política, tornando-se senador, governador do estado ou presidente da nação". Sua retórica é cínica, segundo a documentarista, pois não oferece projetos específicos para o futuro dos camponeses. "Seu chamamento às armas ecoa mais forte entre os camponeses do que os planos construtivos, mas não vistos do governo".

O documentário se mostra preocupado com a influência de um líder anticapitalista e antiamericanista numa "região tão grande como o meio-oeste", que promete o paraíso comunista cubano e chinês aos camponeses. Isso dá esperança às pessoas "cujos problemas vitais são os mais básicos": alimentar-se hoje e amanhã. O contato de Julião com os camponeses é uma das coisas mais mostradas pelo documentário, talvez como forma de alertar ao público sobre a doutrinação marxista do político pernambucano. Em determinado momento, ele se aproxima de um camponês que lhe diz: "A aposentadoria do camponês é o cemitério". Uma das garantias da Constituição de 1988 foi justamente a aposentadoria rural, tão desmerecida por juristas de direita.

No terceiro e último bloco são exibidos mais alguns trechos da entrevista de Rogers com Furtado. "Se eu não acreditasse nisso [solução pacífica e democrática para o problema da terra], não estaria aqui", diz o entrevistado. Indagado se os Estados Unidos poderia ajudar a resolver a questão fundiária brasileira, ele responde: "Esse é um problema nosso. Se não estivermos preparados para fazer o sacrifício para uma solução, qualquer ajuda será inútil", diz. E completa: "Se as coisas não mudarem, podemos ter uma situação explosiva em dois anos". Celso Furtado errou a data do golpe de Estado de 1964 por um apenas ano. 

O documentário, otimista, não acreditava numa solução explosiva, pois "o Brasil não é uma terra violenta". Prevê o êxodo rural desordenado para o Rio e São Paulo, onde há "fábricas e trabalho", e indaga: "Pode um homem viver de promessas quando sua criança precisa de comida?".  Os Severinos da América Latina foram excluídos da marcha de 3.000 anos da civilização ocidental, conclui o documentário, antes de defender que o antídoto para as promessas comunistas é o resultado de ações governamentais. "Os planos do governo para a reforma agrária e o desenvolvimento devem se tornar reais, o primeiro passo deve ser dele".


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O documentário defende uma solução democrática ao conflito rural, que seria executada pelo governo trabalhista de João Goulart. No entanto, num cenário de radicalizações à esquerda e à direita, essa solução falhou. Um dos entrevistados no documentário, o economista Celso Furtado, mostrava-se confiante nesse governo e nessa solução. Ele próprio, entretanto, demonstra preocupação com a radicalização presente na sociedade brasileira de então (qualquer semelhança com a atual não é mera coincidência): de um lado, as elites se recusavam a conceder privilégios às camadas desfavorecidas e, do outro, os pobres, cada vez mais cientes de sua condição, não aceitavam mais serem explorados. E foi essa a receita que levou ao golpe civil-militar de 1964 e que alimenta a crise atual.

Celso Furtado e demais figuras do governo Jango esperavam que, em algum momento, a plutocracia brasileira cedesse. No entanto, a elite brasileira não está acostumada a fazer sacrifícios. Nem mesmo para garantir a paz social. Ou seja, para garantir que seus filhos possam andar despreocupados pelos calçadões das praias. Nos países do norte, por outro lado, uma parcela da elite se recusa a acreditar na militarização como resposta para os problemas sociais. Opõe-se tanto ao comunismo quanto às desigualdades, defendendo o que se convencionou chamar de democracia radical. No Brasil, por outro lado, em pleno 2015 a defesa de uma sociedade menos desigual ainda é confundida com comunismo, às vésperas do 24° aniversário de queda do comunismo soviético.

Assim como Além do Cidadão Kane, o documentário foi obviamente banido no Brasil. A nascente televisão, feita por e para a elite, não tinha o menor interesse em educar os brasileiros sobre as raízes dos problemas socioeconômicos de nossa nação. Em 1964, o Ministério da Justiça baixou decreto censurando oficialmente o documentário. Apesar de seu tom claramente pró-capitalista e pró-americanista, o documentário tocava em feridas ainda hoje abertas de nossa sociedade e poderia trazer problemas para quem achava (e ainda acha) que os problemas sociais se resolvem com a presença de mais policiais na rua.

É salutar que o documentário tenha reaparecido nesse ano de 2015. Novamente o Brasil se encontra como uma terra turbulenta. Esgotadas as possibilidades de ambos ricos e pobres lucrarem com o lulismo, as pessoas novamente se voltam para soluções fáceis para problemas complexos. As evidências históricas - e o documentário da ABC se consiste como tal - existem para que não cometamos os mesmos erros do passado. Nossos avós podem argumentar que foram ignorantes ao apoiar um golpe de Estado em 1964. E nós, argumentaremos o quê? A abundância informativa proporcionada pela internet não nos permite adotarmos posturas ignorantes quanto aos graves problemas de nosso país. 


O documentário foi doado pelo arquivo de Hugh Hefner, o fundador da revista Playboy, à Escola de Artes Cinematográficas da Universidade do Sul da Califórnia e está disponível no canal da instituição no portal de compartilhamento de vídeos Vimeo. Infelizmente está disponível apenas em inglês sem legendas.

3 comentários:

  1. Creio ser de justiça destacar que o texto onde se revelou esse documentário para o Brasil, foi escrito e publicado por Urariano Mota. Primeiro, no Vermelho http://www.vermelho.org.br/noticia/272471-11
    E depois no Luis Nassif Online http://ggnnoticias.com.br/blog/urariano-mota/descoberto-o-filme-que-o-brasil-nao-podia-ver-por-urariano-mota
    No artigp ha um breve histórico dos caminhos difíceis traçados até chegar à divulgação e da sua importância.
    Por último, no filme, o sentido da palavra "master" não é mestre. Mas senhor (de escravos) ou patrão.
    Abraço.

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    1. Sugestões atendidas. Na verdade minha mãe já tinha me atentado para a tradução da palavra "master".

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    2. Muito obrigado pela atenção, Rod . E continuamos trabalhando juntos. Abraço.

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