quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Berniemania

Semana passada, a CNN realizou o primeiro debate entre os pré-candidatos à presidência dos Estados Unidos pelo Partido Democrata. Nas considerações iniciais de cada um deles, um tema apareceu de forma recorrente, como se um fantasma estivesse rondando aquele centro de eventos de Las Vegas. Era o tema da crescente desigualdade social a assolar a nação mais próspera da história do planeta. Nos últimos anos, o crescimento da renda dos 10% mais pobres não acompanhou o crescimento da renda dos 10% mais ricos. Estima-se que o salário mínimo nacional – atualmente em US$ 7 por hora trabalhada – precisaria ser dobrado para que os trabalhadores que o recebem pudessem abandonar a linha da pobreza. Em Seattle, o prefeito Ed Murray aumentou o salário mínimo municipal para US$ 15 a hora após intensa campanha da vereadora trotskista Kshama Sawant.

O senador começa a chamar a atenção.
Assim como Sawant, uma das principais vozes na luta contra a crescente desigualdade social no país tem sido o senador Bernie Sanders. Autoproclamado um "socialista democrático", Bernie foi eleito prefeito de Burlington, maior cidade do estado de Vermont, em 1981, antes de ser catapultado para a política nacional. Enquanto governava a cidade, declarou seu apoio ao governo sandinista da Nicarágua, em repúdio às investidas do presidente republicano Ronald Reagan contra o mesmo. Foi reeleito três vezes e, em seguida, tornou-se deputado federal e senador, sempre de maneira independente, sem afiliação partidária, embora se sente junto aos congressistas de esquerda do Partido Democrata. Defensor de um modelo nórdico do Estado de bem estar social e denunciante de primeira hora das investidas do mercado financeiro e do Partido Republicano contra os trabalhadores, Bernie tornou-se uma das caras do movimento Occupy, ao lado da senadora democrata Elizabeth Warren.

Se Warren representa a crítica econômica à política de concentração de renda dos últimos anos, Bernie representa a crítica social. Sua atuação lembra os populistas do Partido do Povo de 1887–1908. Preso nos anos 1960 por lutar pelo fim da segregação racial, o senador se destaca por defender os sindicatos, os aposentados. as minorias, os direitos reprodutivos das mulheres e atuar contra o lobby das armas, o financiamento privado das campanhas, o imperialismo enquanto política externa, a vigilância dos cidadãos comuns e as privatizações do sistema carcerário, dentre outras pautas progressistas. Bernie se encontrou com a mãe da ativista negra Sandra Blend, morta pela polícia no início do ano e prometeu-lhe que diria o nome de sua filha durante o debate. Assim o fez, colocando-se a favor do movimento #BlackLivesMatter e forçando os demais pré-candidatos do partido a adotar uma postura contra a violência racista das forças policiais do país. Vale abrir um parênteses aqui para ressaltar que Bernie encontrou a mãe de Blend por acaso num restaurante de Washington, D.C. e não tentou obter ganho político da situação; foi só após o debate que o encontro foi tornado público pela pastora da família numa publicação em seu blog.

A campanha de Bernie tem forçado sua principal adversária, a ex-primeira dama, ex-senadora e ex-secretária de Estado Hillary Clinton a sair de sua zona de conforto. Antes de Bernie atingir a marca dos dois dígitos nas pesquisas de opinião para as primárias democratas, ela não sentia a necessidade de falar para o povão, apenas para seus financiadores. Desde então, Clinton tem se afastado cada vez mais das posições do presidente Barack Obama. Criticou, inclusive, o Tratado Transpacífico de Comércio (TPP), um acordo de livre comércio firmado pelo governo Obama com governos de nações banhadas pelo Oceano Pacífico que pode impactar fortemente o mercado de trabalho nos Estados Unidos. No debate da CNN, Clinton prometeu regulamentar de maneira mais rígida e eficiente o setor financeiro. Não demorou para que os apoiadores de Bernie expusessem que boa parte dos financiadores da campanha dela são justamente os grandes bancos e que foi o governo do marido dela, Bill, que deu início à desastrosa desregulamentação do setor, que, à época, recebeu a oposição do então deputado federal de Vermont Bernie Sanders.

Baseada no ativismo tête-à-tête e apostando fortemente nas redes sociais, a campanha de Bernie entusiasmou a juventude, desiludida com os tradicionais candidatos apoiados por banqueiros, e renovou as esperanças dos boomers, cansados dos escândalos políticos, ora envolvendo democratas, ora envolvendo republicanos. O apelo de Bernie é semelhante ao do fictício senador Bulworth, do filme homônimo de 1998. Numa disputa marcada por ofensas pessoais, promessas que não se cumprirão (lembram da promessa de campanha de Obama de fechar a prisão de Guantánamo?) e a lealdade apenas aos financiadores de campanha, o público se diverte sempre que aparece um candidato autêntico, que tira o debate do campo pessoal, recusa doações de figuras escusas (Bernie recusou uma doação do empresário que aumentou o preço de uma das drogas do coquetel anti-HIV em 200%) e é sincero com seus eleitores, mostrando de onde irá tirar o dinheiro para implementar seus grandiosos projetos sociais (dos mais ricos, com renda mensal superior a US$ 250.000). Duvido que o próprio Warren Beatty imaginasse que  um dia aquela campanha que ele imaginou no roteiro do filme se tornaria realidade.

O comediante Larry David parodiando Bernie Sanders no
programa humorístico Saturday Night Live.
Por ora as chances de Bernie vencer Clinton nas primárias são remotas. Embora um famoso dramaturgo que viveu nos Estados Unidos na década de 1940 tenha dito que "nada deve parecer impossível de mudar", acho perigoso cultivar grandes expectativas, ainda mais em se tratando da nação mais capitalista do mundo. A decepção pode ser muito grande. Mas apenas o fato de Bernie ter entrado na campanha, estar representando uma certa ameaça a Clinton e estar obrigando a ex-primeira dama a se posicionar de maneira mais enfática ao lado dos desfavorecidos já é uma vitória. Ela parecia destinada à vitória inconteste, até começar a ter algumas de suas contradições expostas, sendo obrigada a sair de sua zona de conforto e assumir um discurso mais social e menos econômico. Independente do senador de Vermont ganhar ou não, sua campanha já representa uma vitória para a classe trabalhadora dos Estados Unidos. A maior em décadas, inclusive. Desde as vitórias acachapantes de Reagan, os democratas se afastaram bastante de seus eleitores de colarinho azul. O New Deal, aliança eleitoral das minorias, foi substituído pela Terceira Via de Clinton, uma leitura de esquerda do neoliberalismo. Que a Berniemania, que já tomou conta de programas de comédia como o Saturday Night Live e o Ellen DeGeneres Show, não termine tão cedo.

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