terça-feira, 18 de agosto de 2015

Maria, além dos mitos

Sábado, dia 15, foi celebrada a festa litúrgica de Nossa Senhora, Maria de Nazaré. Na Igreja Católica, da qual não faço mais parte desde junho, a data é comemorada como a “Assunção da Virgem Maria”, o que significa que ela, assim como seu filho, teria ascendido aos céus de corpo e alma. Entretanto, não há referência teológica alguma que indique a assunção (ou ascensão) da mãe de Jesus. Segundo o dogma católico romano, Maria seria pura demais para ter seu corpo feito corrupto pela terra. Visões mais realistas, como a de Hipólito de Tebas, autor do século VII que propôs uma cronologia do Novo Testamento, afirmam que Maria teria morrido cerca de uma década após a crucificação de seu filho.

A mistificação de Maria pela Igreja Católica faz parte de uma tentativa maior de excluir as mulheres de posições de comando da maior igreja cristã do mundo. Conforme escrevi num post anterior, a Igreja Católica disseminou a lenda de que a outra Maria da narrativa cristã, a Madalena, fosse uma prostituta de forma a diminuir seu papel de Apóstola e Evangelista, crucial para a construção da Igreja primitiva. A Madalena é a libertina e a Nazarena é aquela que, apesar de crucial para o Evangelho, não participa muito da caminhada de seu filho. As fiéis podem escolher quais dos dois modelos femininos querem seguir. Junto à veneração sobrenormal a Maria, a Igreja Católica ainda lhe atribui outra característica sem base teológica alguma: a virgindade perpétua.

É impensável que José não tenha se deitado com Maria após o nascimento de Jesus. A própria Bíblia se refere a Tiago como “irmão do Senhor”. Mas o mito da virgindade ajuda a propagar uma das duas opções de vida que a Igreja oferece às mulheres – a castidade ou a libertinagem. A primeira é recompensada com a incorruptibilidade e a vida eterna (atribuída a várias virgens históricas que se tornaram santas, como Clara de Assis, Bernadette Soubirous e Rita de Cássia) e a segunda constitui ato tão grave que só encontra perdão no arrependimento sincero e na devoção incondicional a Jesus Cristo. Para refutar o mito que criou, a Igreja inclusive questiona a Bíblia; segundo a instituição, o termo em grego koiné utilizado para se referir a Tiago seria também traduzido como “primo” ou “companheiro”. Ou, então defende que Tiago seria o filho de um primeiro casamento de José sem qualquer ligação sanguínea com Maria ou Jesus.

Interessante notar que a mesma Igreja que executa uma leitura flexionada da Bíblia para sustentar seus dogmas não aceita que outros grupos flexionem a Bíblia para acolher os fiéis homossexuais que se sentem excluídos e frequentemente pensam em se matar. Demorou um quarto de século, mas enfim percebi as hipocrisias e a moralidade seletiva da Igreja Católica para sustentar seus dogmas. O exemplo maior disso foi quando um arcebispo de Recife e Olinda excomungou a mãe de uma menina de 9 anos, grávida do próprio padrasto, porque ela autorizou a filha a realizou um aborto. Era do interesse da Igreja que ela morresse durante o parto para o qual seu pequeno corpo não estava preparado. Ao mesmo tempo, o religioso se recusou a excomungar o estuprador, justificando que se tratava de crime penal e não canônico. Que se fodam as situações concretas de injustiça, é preciso defender os dogmas, né? A realidade é menos importante que os dogmas.

Mas eu não preciso de dogmas. No protestantismo, tenho a liberdade de escolher no que acredito através da leitura, do debate e das discussões racionais. Embora eu acredite na Imaculada Conceição, também acredito que, como toda esposa judia do século I, Maria manteve relações sexuais com seu marido José e teve filhos com ele, dentre os quais Tiago, o irmão do Senhor. Maria não era incorruptível. Era uma mulher camponesa muito boa – como milhares que marcharam até Brasília na semana passada. Sua bondade era tanta que Deus decidiu encarná-la com o Espírito Santo e torná-la um meio de trazer a esse mundo o maior homem que já viveu entre nós. Tamanha era sua bondade que se trata da única mulher citada pelo nome próprio no Corão, ao mesmo passo em que Cristo, visto como um dos muitos mensageiros de Deus pelos muçulmanos, é referido no Corão como “Jesus de Maria” (Isa Ibn Maryam).

A bênção da Maria Nazarena é, ainda hoje, a sina de muitas jovens em nosso país e demais cantos do mundo onde o machismo supera a solidariedade. Quantas vezes em nossa nação dita cristã não ouvimos frases do tipo “Na hora de fazer achou bom e agora reclama” para recriminar as mães de filhos que não têm pai senão o próprio Pai? Aposto inclusive que muitas das pessoas que se valem desse tipo de argumento se chamam Maria, uma vez que este é o nome feminino mais comum no Ocidente. Mas Jesus teve um pai além do Pai: José. E com ele, Maria teve quatro filhos e algumas filhas cujos nomes não se sabe. O que essa família possuía de pobreza material, tinham de riqueza de espírito. Ela não poderia dar a seu filho a educação que muitos dos Apóstolos receberam, motivo pelo qual a palavra de Jesus era desacreditada, mas poderia lhe dar o maior presente que uma pessoa pode dar a outra: o amor incondicional. E foi isso que pesou na hora do Espírito se fazer incarnado. 

O Espírito Santo não buscou uma grande cidade, mas uma vila. Não buscou um palácio, mas uma manjedoura. Não buscou uma rainha, mas a noiva de um carpinteiro. Para salvar a humanidade do pecado e entender como se espalhava a mesquinharia, a arrogância e o ódio era preciso ser um homem comum. E Maria e José eram pessoas comuns. Tão comuns que também cometiam pecados mundanos. João Crisóstomo, arcebispo de Constantinopla do século III, acusou Maria de “ambição, arrogância e vanglória” durante o ministério de Jesus. Não sei ao certo as bases para tais acusações, mas que Maria tivesse sido vítima de tais acusações só prova que, como todos nós, ela era um ser humano imperfeito, nascido no pecado e cheio de falhas. Só porque ela era a mãe do Salvador não significa que ela também não precisasse Dele.

Que nós possamos respeitar Maria por aquilo que ela realmente foi e não por aquilo que atribuem a ela. Se passarmos a vê-la mais como um ser humano cheio de falhas e menos como uma divindade superior, talvez também possamos fazer o mesmo com nossas mães, esposas e companheiras. Que possamos tratar todas as mulheres que carregam em si um coração puro e amoroso como especiais e não só aquelas que se encaixam em nossos dogmas. Que possamos, assim, viver o Evangelho, que é a palavra de Deus, e não os dogmas das igrejas, que são as palavras de homens.

Um comentário:

  1. Pergunta para um Católico bem entendido a respeito de alguns dogmas da Igreja... Aí, você entenderá porque essa "ideia" é respeitada e compreendida por tanta gente consciente há tantos séculos... Desculpe-me, mas mesmo que os dogmas não fossem verdades comprovadas, isto não diminuiria o valor teológico e moral da Igreja Católica na vida de muitos cristãos, católicos ou protestantes... Sua opinião é legal.. Mas nos achismos da vida a gente encontra tanta ignorancia... não à toa que se levantam uma Igreja Protestante em cada esquina, motivados por seus achismos. Mas enfim, esta é a minha opinião.. tenho direito de estar errado também né? Abraços

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